Jean-Luc Godard tirou sua própria vida nesta semana1. “Ele não estava doente, estava simplesmente esgotado”, disse um familiar do cineasta. Um homem brilhante, ícone intelectual do século XX, escolheu morrer por suicídio assistido aos 91 anos. Isso significa que Godard administrou-se uma medicação letal sob supervisão e orientação de uma equipe de saúde. Essa prática é permitida na Suíça, sua terra natal e local de sua morte. Diferencia-se da eutanásia porque é o próprio sujeito que realiza o ato que resulta em sua morte. Suicídio assistido e eutanásia são temas que despertam muito interesse nas pessoas. Defensores e críticos ruborizam-se em debates intensos. A pessoa tem o direito de decidir se continua viva, sejam quais forem as circunstâncias? Não há consenso. Os conceitos de certo e errado ficam pouco claros. Godard escolheu morrer.
Psiquiatra Elson Asevedo fala sobre o flagelo do suicídio e sobre a importância da assistência à saúde mental da população.
Curiosamente, o tema da morte e suicídio esteve presente na vida e obra do diretor. Relatos dão conta de que ele teria tentado suicídio ao menos outras duas vezes em sua vida, nas décadas de 60 e 70. Ele chegou a ser internado em uma clínica psiquiátrica. Em seu décimo filme, Pierrot le feu (O Demônio das Onze Horas), o protagonista Ferdinand tem uma morte trágica por suicídio. Estes relatos significativos da história de Godard reforçam um dado consistente na literatura científica sobre suicídio: a trajetória de sofrimento e adoecimento de quem morre por suicídio é longa.
Como identificar comportamentos suicidas?
Ao contrário do que a discussão sobre suicídio assistido e eutanásia pode fazer supor, há pouco de liberdade de escolha nas mortes por suicídio. Dezenas de estudos em todo mundo demonstram que mais de 90% das pessoas que morrem por suicídio, o fazem em decorrência de uma doença mental.2 Aliás, suicídio pode ser considerado o desfecho mais trágico dos agravos relacionados à saúde mental. Em média, um só suicídio afeta diretamente ao menos 6 pessoas. Se o suicídio ocorrer na escola ou local de trabalho, impacta centenas de pessoas e a sociedade, de modo geral.
A carga econômica e social do suicídio pode ser estimada através do DALYS (Anos de vida perdidos ajustados por incapacidade). De acordo com esse indicador, o suicídio é responsável por 1,8% da carga total de doenças em todo o mundo, variando de 1,7% nos países mais pobres até 2,3% nos países mais ricos. Isso equivale a duas vezes a carga para guerras e homicídios e quase duas vezes a carga do diabetes. Nesse contexto, há que se considerar que os transtornos mentais, que influenciam a maior parte desse tipo de morte, tem tratamentos eficazes, capazes de prevenir esse e outros desfechos negativos. Sob a perspectiva de que cada morte por suicídio é uma morte que poderia ter sido evitada, a dimensão dessa tragédia torna-se ainda mais intensa.
Fonte: Disability-Adjusted Life Years (DALYs)
Dobram os casos no Brasil
Nas últimas décadas, as taxas de suicídio têm caído ao redor do mundo. No Brasil, entretanto, a história não é essa. As taxas de suicídio mais que dobraram no Brasil entre 1979 e 2019.3 Resultado de décadas de falta de investimento do setor público em saúde mental. O Brasil gasta proporcionalmente 20 vezes menos que o Reino Unido em saúde mental e em poucas áreas de atuação governamental a diferença de investimento é tão grande entre esses dois países. A cidade de São Paulo, com maior orçamento entre todos os municípios brasileiros, tem quantitativo de serviços de saúde mental pública insuficientes, atendendo menos de 30% da população. Além disso, o Brasil tem menos do que um terço do número de vagas hospitalares em psiquiatria recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Dados recentes apontam que mais de 50% das pessoas com depressão em São Paulo e Rio de Janeiro não recebem nenhuma forma de tratamento.4 Desse modo, o aumento de suicídios no país não é ao acaso e não é mais possível lidar com um tema tão importante com inércia ou com amadorismo.
Parcerias para reverter o cenário
Por isso, lideranças nacionais em saúde mental da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), com apoio de profissionais de outras instituições nacionais e internacionais, se juntaram para produzirem ações sistemáticas que possam ajudar a reverter este cenário. Em setembro de 2020, foi fundado o Conversas de Vida, Centro de Promoção de Esperança e Prevenção de Suicídio da Unifesp. O intuito deste programa é implementar estratégias baseadas em evidência na prevenção de suicídio em uma lógica de saúde pública, que possam ser replicadas na rede de atenção psicossocial do país. O Conversas de Vida funciona no Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental (CAISM) da Vila Mariana, hospital escola do Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina EPM/Unifesp
A população atendida inclui crianças, adolescentes, adultos e idosos que estejam em crise decorrente de um comportamento suicida. Todos os casos são avaliados inicialmente em triagem por um médico psiquiatra e integrantes da equipe multiprofissional: médicos de outras especialidades, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais e terapeutas ocupacionais, que em parceria com o paciente e a família, definem o melhor local de tratamento e início do planejamento terapêutico individualizado. Assistência, ensino e pesquisa de excelência dedicados a um objetivo de grande relevância para a saúde pública brasileira: reduzir as taxas de suicídio no Brasil em 10% até 2025.
Godard morreu por suicídio assistido. Aos 91 anos, em suas palavras, preferiu morrer a “ficar sendo arrastado em um carrinho de mão”. Infelizmente, mais de 90% das pessoas que morrem por suicídio não tem essa liberdade, pois estão adoecidas. Sentem que não tem valor, que são um fardo para os outros, que merecem estar mortas e que não há saída em vida para um sofrimento tão intenso. São vítimas de uma fraude, pois as outras escolhas possíveis lhes foram subtraídas por uma sociedade que estimula a vergonha perante os transtornos mentais, que não oferece acesso aos cuidados de saúde mental garantidos constitucionalmente, que exige uma vida com cada vez menos afetos. A Universidade tem o dever de se levantar contra essa fraude e fortalecer as conversas e escolhas de vida.
Para quem precisa de atendimento
Ambulatório Conversas de Vida Horário: Sextas feiras, das 13 às 19 horas Endereço: Rua Major Maragliano, nº 241. O canal de agendamentos ocorre via email: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo. Para emergências, os pacientes são orientados a procurar o pronto socorro mais próximo à residência, o pronto socorro do CAISM - Vila Mariana ou acionar o SAMU 192. |
Autores
Elson de Miranda Asevedo
Médico psiquiatra do Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp), coordenador geral do Conversas de Vida e diretor do Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental (Caism/Vila Mariana). Outras informações, clique aqui.
Lucía Silva
Docente do Departamento de Enfermagem Pediátrica da Escola Paulista de Enfermagem, Universidade Federal de São Paulo (EPE/Unifesp). Líder do grupo de pesquisa SleepEMent-CNPq (sono, ambiente e saúde mental), coordenadora de pesquisa do Conversas de Vida e integrante do Centro de Saúde Global da Unifesp (Eixo Neurociências e Saúde Mental). Outras informações, clique aqui.
Maria Cristina Mazzaia
Docente do Departamento de Enfermagem Clínica e Cirúrgica da Escola Paulista de Enfermagem, Universidade Federal de São Paulo (EPE/Unifesp). Coordenadora de Ensino do Conversas de Vida. Outras informações, clique aqui.
Jair de Jesus Mari
Docente e chefe do Departamento de Psiquiatria da EPM/Unifesp. Professor Honorário do Instituto de Psiquiatria do King’s College, Londres. Membro Honorário da World Psychiatric Association. Chefe da Urban Mental Health Section da World Psychiatric Association. Coordenador do Eixo Neurociências e Saúde Mental do Centro de Saúde Global da Unifesp. Outras informações, clique aqui.